quarta-feira, 17 de setembro de 2008

RETRATO


RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles (Antologia Poética)

O meu rosto não mudou - foi mudando.

Falo do rosto que reservo para mim. Um rosto de mim que só eu próprio vejo. O rosto de quem imagino que sou, de quem eu me sinto. Os outros verão outros dos meus rostos - eu vejo este.

Hoje paro e interrogo-me: - "Quem é a pessoa que transporta este meu rosto?". Respondo: - "Sou eu"! Credo, como está, como estou mudado. E “eu não dei por esta mudança”…

Fui tecendo no “meu” rosto vários estados de espírito, como pontos cruz num tapete de Arraiolos, onde um ponto é pouco mas é indispensável para o desenho final: ora um rosto decidido, de pessoa alegre e descontraída, capaz de enfrentar o mundo, desafios e tormentas; ora um rosto de ansiedade, um mar onde flutuam dúvidas e perplexidades; ora um rosto quebrado, de olhar vazio e lábios amargos.

E o ciclo repetiu-se, uma, duas, três vezes... e mais uma e outra ainda. E cada vez menos o meu rosto era decidido e era cada vez mais ansioso. E cada vez mais quebrado. E um dia percebi que aquele meu olhar estava vazio porque estava a olhar para dentro. Que fiz de mim? Como me deixei tornar assim?

Sei que a esposa teve "coisas" que contribuíram para isto. Mas sobretudo, eu deixei-me tornar assim.

Não soube dizer não a tempo e horas, não soube enfrentar certas coisas de outra forma, não soube conviver com ela de outra forma, ...

Não soube estar atento, estabelecer um limite a partir do qual me sentia posto em causa como pessoa... talvez até tenha sabido, mas não soube fazê-lo respeitar.

Consenti no abuso. É chato reconhecê-lo, mas fui cúmplice!

1 comentário:

Anónimo disse...

"Quem é a pessoa que transporta este meu rosto?" Tambem eu fiz esta pergunta a mim, eu estava a "morrer" estava cinzenta e sem brilho nos olhos. Pensei! Tenho que fazer algo agora ou vou mesmo morrer de tristeza e sem saber quem é a pessoa que vejo no espelho. Nunca é tarde, e para mim aos 40 nao era, concerteza!
Estamos sempre a tempo de mudar, procurar a felicidade! Nao podemos desistir de nós.
Ter consciencia dos erros é o primeiro passo para os corregir.