domingo, 28 de dezembro de 2008

DÚVIDA DE NATAL


É Noite de Natal em casa da família de origem.

O momento da troca de presentes vai chegar. Fico aflito à medida que vou antecipando o pouco à-vontade com que irei receber a prenda dela. E dar-lhe a minha. Que sensação estranha: sentir-me mal a dar e a receber coisas que quero dar e receber.

Em anos anteriores já houve algum incómodo. Mas este ano a encenação parece-me uma verdadeira fraude. A mim. Aos filhos. À família. Acho que não é a troca de presentes que me custa: é fazê-lo sem assumir a ruptura do casamento, instalada há tanto tempo. A verdade é que eu vivo uma desunião de facto.

Olho os filhos vezes sem conta: misturam verdadeira alegria com um nervoso miudinho, acho que: nostálgicos dos tempos do Pai Natal em que pai e mãe, cúmplices, faziam natais mais sinceros e mais verdadeiros enquanto festas da família; cúmplices dos pais na encenação em curso. Simplesmente horrível: isto não é educar.

Comecei a interrogar-me até que ponto não será um gesto de amor aos filhos acabar com uma situação que os abala imenso, abdicando de viver na casa deles.

Abdicar é diferente de abandonar: penso num abdicar como uma renúncia generosa, com sentido de perda pessoal mas para bem dos outros (dos filhos).

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

DESENCONTROS E ENCONTROS

(Miguel Torga)
Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada
.
****
Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
(...)
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

"AJUDAR" OU "COLABORAR" ?

Ás vezes, dá vontade de as "ajudar" assim.
É recorrente ouvir-se uma opinião muito politicamente correcta alinhada com as seguintes frases: os homens ajudam pouco ou nada as mulheres no trabalho de casa; sobre elas recai o trabalho doméstico exercido em simultâneo com a profissão; os homens chegam a casa com o objectivo de se sentar em dois lugares: primeiro à mesa e depois em frente da televisão.

● A luta das mulheres pela igualdade teria conduzido, nesta perspectiva, a um resultado menos igualitário: elas lutaram pela igualdade (p. ex., pelo direito ao exercício de uma profissão) mas tiveram de acumular as antigas com as novas responsabilidades.

● Percebo o alcance deste pensamento e penso que ele está ainda muito enraizado na sociedade portuguesa. Muito, mas não completa nem esmagadoramente presente. E já é tempo de enriquecer o discurso vigente com as novas realidades: a dos maridos e pais que gostam e querem participar nas actividades de casa.

● Digo participar e não ajudar. Essa é uma diferença fundamental. E que, em meu entender, denuncia alguma hipocrisia naquele discurso politicamente correcto. De facto, pergunto: é impressão minha ou as esposas não dizem mesmo que elas ajudam os maridos em casa? Soa mal dizer isso, não soa? Pois, encarando o casamento moderno numa óptica de igualdade, também me soa mal ouvir dizer que é o marido quem ajuda a mulher. Ou há moralidade ou a desigualdade é para os dois lados...

● Mas o termo ajudar permanece nos casamentos "modernos"... Porquê? Acho que às mulheres custa perder um certo protagonismo em casa. Ao fim e ao cabo, ser responsável pela lide doméstica dá poder: como se organizam as coisas, como se educa os filhos, etc. Ter o marido a ajudar nisso é uma coisa; participar nisso com o marido é outra coisa.

● Se o casamento funciona mal e se o homem adoptar a postura de querer participar das tarefas domésticas, tal será uma inevitável causa de atritos. E cada vez mais há homens que o querem, que gostam de cozinhar, de tratar dos filhos, de fazer compras, de organizar os espaços e os horários, etc. Isto trás ao de cima o peso da tradição matriarcal: as mulheres acham-se com uma legitimidade e uma competência melhores para tratar de tudo isso e simplesmente não o consentem (de forma directa ou indirecta): quem se queixava por o marido não fazer nada, agora estimula-o a tal, recorrendo (se for caso disso) a outras ajudas (mãe, irmãs, vizinhas, amigas…).

● Para o homem isto é desesperante e quase seguramente uma batalha perdida.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

F(r)ASES - 1

A esperança não é a última coisa a morrer.
É a primeira que nasce quando tudo parece perdido...

OLHA PARA O QUE EU TE DIGO.

  • Hoje, outra vez de novo as coisas do costume. Que de novo não têm nada, amanhã vão voltar a ser assim.

  • O que eu faço, faço mal. “Aquela” tarefa faço do meu jeito? É porque não quero aprender a fazer melhor. Se eu fosse razoável, se visse as coisas com olhos de ver, sem medos, com abertura, com sentido crítico…, já tinha tirado uma conclusão: ela faz isso de uma maneira muito melhor.

  • Quero ter a minha liberdade de opção, o que não é igual a rejeitar à partida as opiniões dela: “a minha maneira de pôr a mesa é diferente da tua? Percebo a diferença, mas gosto da maneira como eu a ponho…”. Às vezes nem é o resultado final da tarefa que está em causa, mas a sequência das operações que são feitas…

  • Com o tempo fui-me sentindo a ser transformado num mero apêndice da cabeça dela, um robot acrítico que fazia o que lhe diziam: “faz como te digo”, “faz agora”, “desculpa interromper”, “logo à noite vai…”, “já te disse que…”, etc. Numa certa altura, ser feliz implicou ter mais respeito pelos meus gostos, pelas minhas preferências, pelas minhas liberdadezinhas, por não ter medo de, às vezes, não fazer o que e como ela queria.
  • Não quero uma vida mecanicista, em que tudo se limita ao “ser mais operacional”, “mais económico”, “mais saudável”, “mais racional”, “mais óbvio”, mais tudo menos mais satisfatório para mim. Porque me dá menos prazer. Porque não se torna natural para mim. Porque sistematicamente contraria os meus ímpetos, levando-me a um permanente estado de conflito interior e de desgastante autocontrolo.
  • Durante algum tempo afastei-me de algumas tarefas. Para evitar conflitos. Mas isso não me fez mais feliz. Decidi voltar a fazê-las. Gosto disso, preciso disso. Luto pelo meu espaço, luto por mim, pela pessoa que sou.
  • Isso fez voltar os mimos antigos: “não estás a ser razoável”, “não sabes ver as coisas”, “estás cheio de medos que te paralisam a capacidade de evoluir”, “não tens abertura aos outros”. É difícil lidar com atitudes destas. E amanhã vou voltar a ouvir tudo isso, quando for …

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

HOSTILIDADE DOS FILHOS


Ontem aconteceu.

O meu adolescente anda irritadiço: início das aulas; início das actividades de ginásio; readaptar-se a amigos e amigas que nas férias, tal como ele, cresceram mais um palmo e mudaram de feitio; sono desregulado; hormonas aos saltos; mau ambiente em casa; ... Tudo contribui para o seu estado intranquilo.

Hoje despejou o saco sobre mim. Confesso: não gosto que isto aconteça, mas sei que às vezes tenho de ser o seu saco de boxe. Houve tempos em que não compreendia essa sua necessidade e reagia mal, mas hoje tento fazer desses momentos oportunidades de aproximação.

Mas ainda não lido bem com os casos em que ele puxa de palavras que me põem em causa perante a mãe. Palavras que eu reconheço das que ela me diz. Não que eles não possam ter ideias comuns – podem. Mas anda no ar um certo perfume manipulativo…

Ao fim dum certo tempo ela veio à conversa. E foi aí que o rapaz acabou por se irritar e desapareceu! Ficámos os dois, o momento ideal para o inevitável "estás a ver, até os teus filhos dizem de ti que...". Pois... dizem, sim, sei que não sou um anjo.

Mas a verdade é que ele não conseguiu adormecer nessa noite: fui para o quarto dele, conversámos lindamente, entendi-o, entendemo-nos. Depois disso, eu ainda fui trabalhar e ele adormeceu com carita de anjo!

E eu também adormeci mais feliz!

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

RETRATO


RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles (Antologia Poética)

O meu rosto não mudou - foi mudando.

Falo do rosto que reservo para mim. Um rosto de mim que só eu próprio vejo. O rosto de quem imagino que sou, de quem eu me sinto. Os outros verão outros dos meus rostos - eu vejo este.

Hoje paro e interrogo-me: - "Quem é a pessoa que transporta este meu rosto?". Respondo: - "Sou eu"! Credo, como está, como estou mudado. E “eu não dei por esta mudança”…

Fui tecendo no “meu” rosto vários estados de espírito, como pontos cruz num tapete de Arraiolos, onde um ponto é pouco mas é indispensável para o desenho final: ora um rosto decidido, de pessoa alegre e descontraída, capaz de enfrentar o mundo, desafios e tormentas; ora um rosto de ansiedade, um mar onde flutuam dúvidas e perplexidades; ora um rosto quebrado, de olhar vazio e lábios amargos.

E o ciclo repetiu-se, uma, duas, três vezes... e mais uma e outra ainda. E cada vez menos o meu rosto era decidido e era cada vez mais ansioso. E cada vez mais quebrado. E um dia percebi que aquele meu olhar estava vazio porque estava a olhar para dentro. Que fiz de mim? Como me deixei tornar assim?

Sei que a esposa teve "coisas" que contribuíram para isto. Mas sobretudo, eu deixei-me tornar assim.

Não soube dizer não a tempo e horas, não soube enfrentar certas coisas de outra forma, não soube conviver com ela de outra forma, ...

Não soube estar atento, estabelecer um limite a partir do qual me sentia posto em causa como pessoa... talvez até tenha sabido, mas não soube fazê-lo respeitar.

Consenti no abuso. É chato reconhecê-lo, mas fui cúmplice!

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

UM GRITO DE ALERTA

Ouvir aqui: Grito de Alerta (Maria Bethânia, Gonzaguinha)
(...) Há um lado carente dizendo que sim
E essa vida da gente gritando que não.

Que arrepio só de pensar que foi esta a música do nosso namoro.

Porque não estive atento aos sinais que já estavam em cima da mesa? Porque quis acreditar que eram só birras de namorados e não as evidências que o tempo se encarregaria de atirar à cara de gente carente e imatura?

Deixei-me arrastar anos a fio nesta vida da gente que grita que não, na inerte esperança de que se acalmasse o meu lado carente. Mas não posso continuar a confundir desejos com realidades: estou cada vez mais carente e a vida grita cada vez mais alto a sua recusa!

É talvez a grande encruzilhada da minha vida, que me leva a apetecer cruzar-me com novas pessoas, que estejam a viver ou tenham vivido problemas idênticos, com quem possa partilhar histórias de vida com pontos comuns, antecipar ao que podem levar alguns caminhos, sensibilizar-me para soluções criativas de problemas semelhantes, etc.

É para isso que crio este blog. Para uma partilha descomprometida.